A Colômbia é fornecedora de um dos produtos mais consumidos pela humanidade. A terra natal de Valderrama e Pablo Escobar é exímia na plantação, colheita, processamento e exportação do estimulante que trouxe fama internacional ao país. Beneficiada pela localização geográfica da região andina, conta com terra vulcânica, clima tropical e altitude elevada, condições perfeitas para o cultivo desse psicoativo. Essas são algumas das razões pelas quais o café colombiano é reconhecido como um dos melhores do mundo. Outra justificativa é a colheita manual.
No último evento, em outubro do ano passado, 112 inscritos se reuniram em frente a uma base militar, percorrendo 4,5 km em carreata até a Praça de Bolívar, na cidade de Armenia (Paulo Vitale)
Mas há um porém nessa forma de trabalho: grão de café não desce do cafezal sozinho. A altitude e o terreno montanhoso fazem bem ao sabor, mas são um pesadelo logístico na hora de desafogar a produção – linhas férreas ou estradas nem sempre são viáveis, pois têm custos impraticáveis aos pequenos produtores.
E é aqui que começa a história do Jeep Willys, um veículo pequeno o suficiente para circular pelas mesmas trilhas em que mulas transportavam sacas de café, valente o suficiente para vencer a falta de pavimento entre as fincas (fazendas) e as cidades e relativamente barato e fácil de manter, algo indispensável para qualquer negócio. No começo dos anos 50, o jipe substituiu os animais para o transporte dos produtos, ganhando o apelido de mulitas mecánicas. Logo se tornou parte da paisagem no Triângulo Cafeeiro do país.
Assento, direção e pedais foram adaptados para que o Willys possa ser guiado mesmo com o eixo dianteiro suspenso (Paulo Vitale)
Adquiridos pelas famílias produtoras de café, os Willys passaram a carregar não só as sacas de grãos, mas todo tipo de carga, inclusive passageiros. Montanha acima e abaixo, os jipes começaram a ajudar na vazão da produção agrícola, faziam a mudança das famílias e levavam gente de um ponto a outro. O trabalho rendeu reconhecimento do povo e outro nome carinhoso: yipao (algo próximo do “jipinho” brasileiro). Foi assim que o jipe se tornou o hijo adoptado por Colombia – ou o “filho adotado pela Colômbia”.
A alegoria retrata o que acontecia no passado: famílias de mudança, com tudo o que possuíam, no “lombo” do velho Willys (Paulo Vitale)
Dessa devoção surgiu o Desfile de Yipao, realizado anualmente em Armenia (a 280 km de Bogotá), em meio às festividades que celebram o aniversário da cidade. Todo outubro, a capital de Quindío, o segundo menor departamento da Colômbia, abriga uma parada de jipes enfeitados que atrai visitantes do país inteiro. Em 2006, 370 jipes participaram do evento, um recorde que colocou o desfile no Guinness Book.
Na caravana folclórica de yipaos, seus donos os carregam com tudo o que podem. Objetos e móveis são amontoados a até 3 metros de altura. Outros sobrecarregam os veículos com produtos agrícolas e, claro, sacas de café. A alegoria retrata o que acontecia no passado: famílias de mudança, com tudo o que possuíam, no “lombo” do velho Willys, frequentemente em busca de emprego e trabalho em outras propriedades rurais.
Toda a ornamentação dos yipaos serve para homenagear o jipe e também a cultura cafeeira (Paulo Vitale)
Criado em 1988, o desfile é acompanhado de perto pela população, que toma integralmente os quase 5 quilômetros da Avenida Bolívar. Ainda que a decoração kitsch pareça estranha aos forasteiros, é cultuada, celebrada e, após as três horas de festa, premiada. Toda a ornamentação dos yipaos serve para homenagear o jipe e também a cultura cafeeira.
O passar das décadas trouxe prosperidade e a região se modernizou, mas o velho Willys permanece na ativa. A Colômbia é afetada por um problema comum aos brasileiros: a desigualdade de renda da população. Os mais pobres, morando muito longe do trabalho, sem recursos e mal atendidos pelo transporte público, têm de recorrer a veículos de até 65 anos (e ainda longe da aposentadoria).
Um dos desafios dos jipeiros é percorrer em linha reta a maior distância possível com o carro equilibrado no eixo de trás (Paulo Vitale)
Armenia está a 1.480 metros acima do nível do mar, mas a região montanhosa dos Andes tem altitudes que variam de 1.200 a 1.800 metros. A geografia, que faz bem ao café e garante o sustento das pessoas, é ao mesmo tempo um obstáculo para os quase 600.000 pequenos produtores rurais.
O motorista Roberto Padilla é dono de um Jeep CJ3 1950 e ganha a vida transportando pessoas entre a cidade de Calarcá e as fazendas de Quebrada Negra. Faz diariamente até seis viagens, cada trecho durando 1h20. Como a maioria de seus colegas de trabalho, não sabe dizer a distância que percorre todos os dias – calculam a travessia em tempo. Mas o trecho rural entre Calarcá e as fazendas de café localizadas em Quebrada Negra tem até 20 km. Cada passageiro paga 3.000 pesos colombianos pelo serviço, algo em torno de R$ 3,10. Mas não pense em uma viagem confortável: até 15 pessoas vão em pé no carro, na parte interna e externa, apoiadas em estrados de metal parafusados nas travessas do chassi.
O rapaz aí da foto é o motorista do Jeep Willys (Paulo Vitale)
Se a situação dos viajantes é ruim, a dos donos de yipaos também não é das melhores. Além de trabalhar por jornadas extensas e cansativas, o retorno financeiro não é muito vantajoso. E as condições de trabalho os levam a superlotar o jipe para conseguir fechar as contas. Com o litro do combustível a R$ 2, e o Jeep consumindo aproximadamente 1 litro a cada 4 quilômetros, precisam de pelo menos cinco passageiros para não ter prejuízo com os custos de operação. Não são raros os motoristas que levam mais de dois anos para quitar o carro. Padilla, por exemplo, pagou 7,2 milhões de pesos (cerca de R$ 7.400) em seu Willys, no começo de 2016, fazendo empréstimos com parentes.
Na rua, o cheiro de óleo queimado e de gasolina – um indício de mistura rica, se embaralha com o odor de frutas e carne, ao lado do mercado central. Feiras de rua, galerias e vendedores ambulantes são abastecidos graças ao trabalho das pessoas e dos veículos.
Os participantes se vestem a caráter com roupas festivas (Paulo Vitale)
O Desfile de Yipao celebra esse esforço. A organização divide os jipes em categorias (café, produtos agrícolas, temáticos, mudanças e piques). Esta última, a mais ousada, envolve acrobacias. Entre 1.000 e 1.300 kg de carga são empilhados na parte traseira, elevando a dianteira. O ponto de equilíbrio é tênue: o eixo da frente toca o chão, mas empina ao menor toque no acelerador. Um dos desafios para os jipeiros é percorrer em linha reta a maior distância possível com o carro equilibrado no eixo de trás.
A caracterização dos participantes é um espetáculo à parte (Paulo Vitale)
Não há substituto para os velhos Willys – um fenômeno semelhante ao que a Kombi provocou no Brasil. As regiões mais pobres não contam com serviço de transporte eficiente, nem vias públicas adequadas. O acesso às fazendas e povoados até hoje depende do torque elevado e da tração 4×4 dos vovôs motorizados.
Criado em 1988, o desfile é acompanhado de perto pela população, que toma integralmente a Avenida Bolívar (Paulo Vitale)
Por não oferecer alternativa, as autoridades fazem vistas grossas à situação precária dos jipes, mas impõem à população regras que não fazem sentido: exigem que o motorista e passageiro dianteiro viajem presos ao cinto desegurança, mas ignoram as outras dez pessoas que vão em pé.
O jipe faz parte do cotidiano e dos negócios. Virou até unidade de medida: 1 yipao equivale à quantidade de carga que o carro carrega. Para os colombianos, 600 kg em toras de madeira de uma vez só é rotina. Assim como 50 sacas de café. Ou 15 pessoas a bordo do veículo. Não tem romance nessa história, mas dá para celebrar mesmo assim. Na Colômbia, a festa e o trabalho pesado não cessam.