O som do motor é uma das características centrais de um carro. Mas o que você escuta quando pisa no acelerador pode não ser real
Para andar no dia a dia, a maioria das pessoas quer um veículo dócil, que rode com tranquilidade e sem muito barulho ou vibração. Quem gosta de dirigir quer isso, mas também quer o contrário: um motor que, quando é um pouco mais exigido, responda com um ronco encorpado, cheio de força e personalidade. Se o motor é o coração do carro, o ronco é seu batimento cardíaco. O som que o veículo emite quando você dá a partida e acelera é uma parte central da satisfação de dirigir.
As montadoras sabem disso, e projetam esse som tão minuciosamente quanto as outras características do carro, como o design da carroceria ou o comportamento do volante. Esse capricho todo acabou levando à adoção de um truque: em alguns modelos, o que você ouve quando pisa no acelerador não corresponde ao verdadeiro som do motor. É um ronco artificial, gerado por uma tecnologia que várias montadoras foram adotando, discretamente, nos últimos anos. Ela é bem surpreendente – e divide opiniões. Mas, para entender como funciona, antes é preciso saber o que determina o barulho de um motor.
Frequência natural
Pense em um muscle car, como o Corvette, e você se lembrará de uma coisa: o ronco típico, bem grave e encorpado. Agora pense numa Ferrari. O som dela é completamente diferente, certo? Como explicar isso? Por que um V8 de Corvette soa tão diferente de um V8 Ferrari? “São muitos fatores, desde o número de cilindros do motor até o comprimento do escapamento”, explica Marcelo Alves, professor do Centro de Engenharia Automotiva da Poli-USP.
Tudo começa dentro dos cilindros. Quando os pistões se movimentam, geram vibrações que deslocam ar – e esse deslocamento de ar se propaga até chegar aos ouvidos do motorista, cujo cérebro interpreta aquilo como som. Todo motor tem uma frequência natural, ou tonalidade sonora, e você mesmo pode calcular a do seu carro. É só fazer uma continha simples: rotações por segundo vezes número de cilindros dividido por dois.
Vamos supor que o nosso motor esteja girando a 1 800 rpm. O primeiro passo é dividir esse valor por 60, para chegar ao número de rotações por segundo – que, no nosso exemplo, é 30. Agora, vamos contar quantos cilindros o nosso motor tem. Vamos supor que ele seja um V6, com seis cilindros. Os motores de carro quase sempre funcionam no esquema quatro tempos, em que os pistões são acionados alternadamente, metade deles a cada giro do motor. Por isso, para descobrir o som natural do motor, temos que dividir esse número pela metade: 3. Agora é só fazer a continha: 30x3 = 90. Pronto. A frequência natural do nosso motor, quando ele está girando a 1800 rpm, é 90 hertz – um ronco forte. Se o motor tivesse quatro cilindros, por exemplo, a frequência natural seria mais baixa: 60 Hz, que corresponde a um som bem mais chocho.
Mas a frequência natural dos pistões não é o único componente do ronco de um carro. Voltando ao nosso exemplo inicial. Por que o V8 da Ferrari soa tão diferente do V8 de um Corvette? A chave dessa resposta está no virabrequim. No motor italiano, ele é plano. Todas as manivelas, os pontos de encaixe entre os pistões e o virabrequim, são alinhadas lado a lado. E isso determina a ordem de disparo dos pistões: acionados de forma regular, eles geram um fluxo de gases com pulsos e espaços bem definidos, que vão para o escapamento e produzem o típico barulho Ferrari. No Corvette, o virabrequim é cruzado – as manivelas formam ângulos de 90 graus entre si. Isso muda totalmente a ordem de disparo dos pistões, que passa a ser irregular, com picos de emissão de gases que aumentam temporariamente a pressão no escapamento – o segredo do som típico dos V8 americanos.
O motor boxer da Porsche também tem marca sonora própria. Nele, os pistões estão dispostos três de cada lado, mas alinhados no mesmo plano; não formando um ângulo, como nos motores em V. Esse layout gera menos vibração e resulta em outra ordem de disparo dos pistões – o que afeta diretamente o ronco.
O DNA do som
Em 2015, a notícia de que a Porsche passaria a adotar motores turbo fez fãs temerem que o som natural da marca fosse descaracterizado. Mas ele foi razoavelmente preservado, em parte graças a uma tecnologia inteligente (mais sobre ela daqui a pouco). No ponto mais extremo, estão carros como oMcLaren P1, o hiperesportivo híbrido que alcança 916 cv de potência, graças à combinação de um V8 a gasolina, com dois turbocompressores, e um motor elétrico. Essa combinação exótica dá a ele um som bem diferente de qualquer outro automóvel.
Independentemente do motor, tudo vai terminar no escapamento, que é responsável por boa parte do som do veículo. Dentro dele, há um abafador, que bloqueia a saída de parte do ruído, e em alguns casos também um ressonador, que absorve algumas frequências de som e deixa passar outras. Essa característica pode ser ajustada pelos fabricantes, em busca de um ronco específico. “Atuamos no escapamento e no filtro de ar para obter a sonoridade do motor”, diz Gilberto Geri, gerente de testes especiais da Ford. “Temos a capacidade de mexer no ruído para deixá-lo mais ou menos esportivo.”
O som que cada carro vai ter é definido de acordo com a categoria a que pertence. Se for uma minivan, por exemplo, provavelmente o comprador deseja o máximo de silêncio possível. Quem compra um esportivo, por outro lado, quer ouvir o ronco do motor. Em certos casos, os fabricantes tentam conciliar ambas as características num mesmo veículo. “Alguns modelos BMW possuem válvulas dentro do tubo de escape, que abrem de acordo com a potência demandada pelo motorista”, afirma Emilio Paganoni, gerente sênior de projetos da marca. Isso significa que, em baixas rotações, o motor trabalha em silêncio. Mas, quando o motorista pisa mais fundo no acelerador, essa válvula se abre – e o ronco gerado pelo escapamento fica mais forte, mais esportivo. É a mesma solução usada pela Jaguar no F-Type. Em alguns modelos da Porsche, como o 911, existe uma válvula que é aberta, quando o motorista pressiona o botão Sport, e deixa passar mais ruído do motor para dentro da cabine. O Focus ST, da Ford, também utiliza uma tecnologia semelhante.
São maneiras de produzir um ronco mais esportivo sem comprometer o silêncio em baixas rotações – que na Europa é exigido por lei, inclusive. As soluções citadas até agora são totalmente naturais, ou seja, apenas manipulam ou redirecionam o barulho que o motor realmente produz. Mas nem sempre é assim. E é aí que tudo fica mais interessante – e controverso também.
Ronco eletrônico
Os BMWs da série M são esportivos de fato. Têm motores turbo de 6 ou 8 cilindros, que desenvolvem mais de 500 cv. Quando acelerados, deixam isso claro, emitindo um ronco gutural e imponente. Mas parte dele é artificial. É uma gravação, tocada pelos alto-falantes do rádio do carro. “O ruído é gerado com base em vários parâmetros do motor, como velocidade e aceleração”, explica Paganoni. A tecnologia se chama Active Sound Design, e está presente em toda a série M. Grosso modo, o computador de bordo vê a rotação do motor e reproduz o ruído correspondente àquele patamar. O resultado é impecável, o motorista não percebe nada de anormal. Mas se o reforço eletrônico for desligado, o que pode ser feito desconectando um cabo do sistema de som, o M5 se transforma. Fica bem mais silencioso, quase um sedã familiar.
A Ford também usa a tecnologia de ronco artificial. Ela está presente no Mustang EcoBoost, de 4 cilindros. O sistema foi batizado de ESE (Electronic Sound Enhancement), e funciona da mesma maneira. Conforme você acelera, os alto-falantes do carro emitem sons gerados eletronicamente para reforçar o ronco natural do motor. “O sistema serve para dar uma assinatura sonora mais esportiva ao modelo”, diz Geri. É uma maneira de fazer o motor EcoBoost soar mais parecido com os 310 cv de potência que entrega. Nos Lexus IS300 e NX, que também usam ronco eletrônico, o sistema pode até ser controlado ou desabilitado pelo painel (a opção se chama Active Sound Control).
O ronco eletrônico não está presente apenas em superesportivos ou modelos de luxo. A Volkswagen emprega uma versão dele, batizada de Soundaktor, no Fusca Turbo, no Jetta TSI e no Golf GTI. O Soundaktor capta o som do motor e o amplifica eletronicamente. Mas não usando os alto-falantes do rádio: ele tem um falante próprio, que mede aproximadamente 10 centímetros de diâmetro e está localizado entre o compartimento do motor e a cabine. Sem ele, o ronco fica menos grave.
Ao descobrir que seus carros usam um truque eletrônico para aumentar o ronco do motor, alguns proprietários ficam desapontados – tanto que o assunto é bastante comentado em fóruns online, onde é possível encontrar instruções de como desabilitar os sistemas de ruído artificial e gravações mostrando o resultado. Os fabricantes, por outro lado, alegam que ele é uma forma legítima de entregar a sensação de esportividade sem comprometer outras características do motor, como consumo de combustível e emissão de poluentes. “É um instrumento para garantir um som típico de cada marca, que talvez não pudesse mais ser reproduzido porque é preciso atender a outros requisitos, como o controle de emissões”, diz o professor Alves, da USP.
O ronco eletrônico é uma maneira sensata e ecológica de incrementar o som do motor. No futuro, ele tende a se tornar cada vez mais comum (inclusive por causa dos carros elétricos, que a partir de 2019 serão obrigados, nos EUA e na Europa, a emitir algum ruído de motor artificial para alertar os pedestres e evitar atropelamentos). Mas, na próxima vez em que você pisar um pouco mais forte no acelerador para ouvir o ronco de um carro, lembre-se. Talvez ele não seja exatamente o que parece.
Fonte: Quatro Rodas em 30/12/2015
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